A Quinta do Piloto é herdeira da tradição vinícola de quatro gerações da família Cardoso em Palmela. Os seus vinhos são fruto de lotes escolhidos entre 200 hectares de vinhas nos melhores terroirs da região. Filipe Cardoso viu na extensa área de vinhas velhas e na experiência familiar a oportunidade de selecionar vinhos extraordinários.
Texto: Pedro Silva
Fotos: Fotos D. R.
Em 2008 o projeto embarca numa nova viagem. O que mudou?
FC – Tudo começou no início de 1900 com o meu bisavô, Humberto Cardoso. Aos 18 anos foi pra o Brasil, à espera de lá ganhar a sua fortuna. Ao final de dois anos regressou da mesma forma como tinha ido, ou seja, sem conquistar fortuna nenhuma e, como tal, acabou por regressar a Portugal. Nesse momento conhece à minha bisavó Adelaide Carvalho, que já tinha alguns terrenos aqui na região com ligação à indústria vitivinícola. Ao casar-se com ela, começou a despertar a curiosidade pelos vinhos, embora a primeira empresa que ele fundou nada teve a ver com os vinhos. Foi uma empresa rodoviária chamada Auto-cars Palmelense, que foi a primeira empresa rodoviária em Portugal nessa altura. Foi a primeira empresa em Portugal a fazer um trajeto para fora de Portugal, nomeadamente para Sevilha, ou seja, Cacilhas – Sevilha. Passados uns anos acabou por vender essa empresa à família Belos que era uma família conhecida aqui em Setúbal. Nessa altura decidiu investir todo o seu dinheiro na aquisição de 3 propriedades: a Herdade da Agualva, a Herdade da Fonte da Barreira e a Herdade do Lau. Decidiu também fazer duas adegas, uma delas é a Adega da Serra e a outra a da Quinta do Piloto.
A Quinta do Piloto vem ainda de uma história mais antiga. Não tinha vinhas nem tinha adega. Pelo que se fala, a Quinta do Piloto, surgiu na altura dos descobrimentos. O seu primeiro proprietário foi um piloto mor da Frota Marinha Portuguesa na Rota das Índias, chamado Gaspar Reimão, também conhecido como piloto mor do rei, que morava naquela quinta e por isso ela ficou batizada como Quinta do Piloto. No início do século XX o meu bisavô acabou por comprar essa quinta, onde construiu uma adega e plantou vinhas. O negócio passou de pai para filhos, ou seja, para o meu avô e para o meu tio-avô e posteriormente para o meu pai. O negócio centrava-se na produção de vinhos para venda a granel, por isso nunca tivemos a necessidade de colocar os nossos vinhos no mercado. Quando eu apareci no negócio, onde já tinha uma grande paixão pelos vinhos, pelas vinhas e pelos meus antepassados, achei que seria a altura para fazermos um vinho da nossa quinta, com a nossa identidade e com a nossa assinatura, embora nos dias de hoje, uma boa parte do nosso negócio ainda passa pela venda a granel.
Aproveitamos as nossas melhores uvas, nos nossos melhores terroirs para produzir os vinhos da nossa quinta. Isto nasceu em 2008 com a criação da empresa Quinta do Piloto Vinhos, porque antigamente a sociedade chamava-se Casa Agrícola Carvalho Cardoso. Fizemos um projeto com a nossa impressão digital, para que a nossa região fosse conhecida por ter vinhos com uma boa relação qualidade – preço, mas também com vinhos autênticos, que respirem o terroir da região e vinhos de gama alta com qualidade premium. Queremos ser um produtor que faça a diferença e não ser mais um produtor na região.
FC – O nosso método de vinificação é muito peculiar. Na minha opinião, é muito interessante o que nós fazemos para vinificar os nossos “Castelões”. O Castelão é a casta rainha da nossa região. Já desde o tempo do meu bisavô que temos um método muito particular de o vinificar. Primeiro é um método de vinificação em ânfora argelina, que contempla as preocupações ambientais e de sustentabilidade. Toda a nossa adega está construída em gravidade, sem a utilização de bombas. As paredes são muito largas para conservar uma boa temperatura interior na adega e grandes janelas para entrar luz natural.
Como é a vinificação em ânfora argelina?
FC – Colocamos as uvas dentro das ânforas de cimento, onde existem duas partes: na parte inferior onde está a uva e a parte superior à qual nós chamamos taça. A ligação entre a parte superior e inferior da ânfora é feita em três pontos. Um ponto central composto por um aparelho que nós enchemos de mosto que é rasgado à volta. Temos outro ponto de contacto que é uma válvula de água que é separada da taça e um tubo que vai desde a taça até a parte de baixo. Portanto, quando a fermentação começa, é criada uma pressão dentro da cuba e essa pressão não tem por onde sair. Um dos orifícios esta bloqueado com água e o outro com mosto. Começa a ser exercida uma pressão que faz com que o vinho suba pelo outro tubo até a taça. Quando a pressão é muito grande na parte inferior da ânfora, a válvula de água não aguenta a pressão, ocorrendo uma descompressão da água, que é expulsa da válvula, o que faz com que todo o vinho que subiu à taça desça pelo aparelho central que está rasgado e que faça a lixiviação, ou seja, a remontagem. Isto tudo sem a utilização de bomba. Este é um método 100% natural em que se aproveita a energia libertada da fermentação para fazer um equilíbrio capilar de forma ao vinho subir e descer de acordo com a pressão interior do depósito. Um método sustentável, sem gasto de energia e com uma pegada de carbono muito baixa.
Como define o terroir das suas vinhas?
FC – Na nossa região temos dois terroirs muito distintos. Um deles tem uma grande influência da Serra da Arrábida, que são todas aquelas vinhas que estão no Parque Natural e na Serra. Essas vinhas têm uma exposição norte, com um terreno argilo-calcário, com capacidade de drenagem, de infiltração de água e consequentemente da sua retenção no solo. O outro terroir vai de Setúbal praticamente até Pegões. É uma zona quase exclusivamente arenosa e de planície. Por incrível que pareça, o terroir arenoso tem uma influência mais atlântica do que o terroir da Serra, porque não tem a barreira da proteção aos ventos atlânticos que a Serra da Arrábida tem. Na planície das areias esses vinhos entram trazendo a sua influência para as vinhas, onde depois encontramos vinhos mais salinos.
A mineralidade não vem apenas da altitude, vem também da proximidade do mar. Depois temos o nosso Moscatel que é mais fresco, que não é tão atlântico, tem uma exposição a norte num terreno argilo-calcário, tornando-o muito aromático e muito fresco sem acumular muito açúcar. Quando queremos fazer um licoroso é uma vantagem poder faze-lo com as vinhas da Serra da Arrábida. O nosso Castelão está todo nas areias, porque é onde eu acredito que o Castelão mostra o seu potencial, o seu esplendor, a sua diferenciação. O Castelão está espalhado um pouco por todo o país, mas poucas regiões têm este terroir atlântico e de areia.
Situada em pleno Parque Natural da Serra da Arrábida, no epicentro de uma das mais tradicionais e emblemáticas adegas da região. Que experiências podemos encontrar na Quinta do Piloto?
FC – Na Quinta do Piloto nós temos uma particularidade muito boa. Junto à adega temos 4 hectares de vinha Moscatel e é por aí que tudo começa. Iniciamos com uma visita à vinha e com uma explicação do estado fisiológico em que a vinha se encontra, aludindo às características da nossa região. Depois vamos até a Fonte de Santo António no meio da vinha. Temos aqui uma grande tradição com realização de um picnic, que agora devido à pandemia não temos concretizado, mas que fazíamos todos os anos desde que abrimos o enoturismo. De seguida entramos na adega e explicamos as nossas tradições. Temos uma adega com história. O nosso evento anual mais importante é a adiafa, em que temos uma exposição de bandeiras, alguns cartazes ilustrativos dessa tradição.
A adiafa é a celebração do último dia da vindima, em que os trabalhadores e os patrões se unem para festejar o final da vindima. Agradecemos o empenho de toda a gente para que a vindima tenha corrido bem. Entrego uma bandeira simbólica feita pelos trabalhadores a assinalar o final da vindima. Visitamos também a adega das ânforas argelinas onde explicamos o nosso peculiar método de fermentação. Em seguida, vamos até a adega onde temos os Moscatéis em estágio. Entramos na zona das aguardentes, que estão desativadas atualmente, mas explicamos todo o processo de destilação vínica e bagaceira. Terminamos com uma prova. Temos vários tipos de prova em que as pessoas podem escolher. Podemos ter, por exemplo, uma prova só de Moscatéis onde podemos provar alguns deles diretamente das barricas. Temos sempre muitas experiências a acontecer na nossa quinta, embora com a pandemia estejamos mais condicionados, mas esperamos rapidamente podermos retomar normalmente todas as nossas dinâmicas.
FC – Nós encaramos o enoturismo como fulcral. Ao trazermos os nossos clientes e os nossos consumidores à nossa casa, conseguimos passar uma mensagem completamente diferente. As pessoas ficam a perceber o que está por detrás do vinho, como é que nós fazemos as coisas e qual é a nossa história. Quando o consumidor se deparar com os nossos vinhos, lembrar-se-á que já esteve na nossa adega, onde vivenciou uma experiência diferenciadora e poderá ser importante para escolher o nosso vinho. Nós encaramos o enoturismo como uma ferramenta fulcral para imposição dos nossos vinhos no mercado.
Os próximos anos da Quinta do Piloto serão a aposta na tradição ou haverá lugar à inovação?
FC – Nós somos muito clássicos, somos uma casa de família com tradição nos vinhos, mas só com a experimentação é que conseguimos evoluir. O nosso vinho mais vendido é o Piloto Collection Roxo. Nasceu de uma experiência com uma forma de vinificar o Roxo que não era usual na nossa região, ou seja, vinifica-lo em branco seco. Atualmente, é o vinho mais vendido da nossa casa. Conseguimos inovar numa indústria que era muito clássica. Há sempre lugar para a inovação. Este ano lançamos uma edição chamada Kamikaze, que resulta de experiências que fazemos na adega e que colocamos no mercado para saber a opinião dos consumidores sobre o trabalho desenvolvido. Uma destas experiências esgotou em muito pouco tempo. Foi um vinho tinto Castelão que envelheceu em barricas de Whisky (Quinta do Piloto Kamikaze Whisky Tinto), que teve uma aceitação do público excecional. Possivelmente será um nicho de mercado que nós ainda iremos explorar. Portanto, embora sejamos uma casa clássica, há sempre lugar para a inovação, porque só desta forma é que podemos progredir e avançar.