António Luís Cerdeira é rigoroso, persistente e organizado, sempre com humor e vontade de inovar. Natural de Melgaço, nasceu no mundo do vinho e da vinha. Conhecedor profundo do Alvarinho, atualmente é gestor e enólogo do Soalheiro, funções que desempenha com paixão e alegria. Com um sorriso espontâneo, sente a adega e o Soalheiro como ninguém.
Texto: Pedro Silva
Fotografias: Fotos D.R.
Natural de Melgaço, nasceu no mundo do vinho e da vinha, é um conhecedor profundo do Alvarinho, gestor e enólogo do Soalheiro. Como se sente no dia a dia, gestor ou enólogo?
ALC – Ambos. E não há fronteiras. É engraçado porque eu nem sequer penso quando sou gestor ou quando sou enólogo, porque o mundo cruza-se e acho que até é algo bom. Costumo até brincar ao dizer que os consensos entre gestor e o enólogo são muito fáceis de conseguir, embora por vezes nas empresas isso não seja tarefa fácil. Na gestão existe uma estratégia e o enólogo poderá ter outras prioridades, outros sonhos. Nós podemos ter o melhor dos dois mundos que é falar um pouco de estratégia do Soalheiro e juntar um pouco a parte mais técnica, mais emotiva do que é a prova de vinhos e que são os perfis de vinho.
Pioneiro na criação do vinho Alvarinho em Melgaço e uma referência internacional para os vinhos desta casta. Recorda-se como foi a sua primeira vindima?
ALC – O projeto começou com o meu pai em 1974. O meu pai foi quem teve a primeira inovação do Soalheiro, que foi plantar a primeira vinha contínua em Melgaço e depois a criação da marca em 1982. Como é lógico, neste mundo da família e do vinho não há uma separação. Não há uma fronteira. E se me perguntar quando é que entro no mundo do Soalheiro não faço a mínima ideia. A verdade é que isto é algo como respirar. Tinha dois anos quando se plantou a primeira vinha. Lembro-me de fotografias que vi e depois é tudo um pouco orgânico. Mesmo a inovação que surge no Soalheiro é um processo continuo. Na verdade, há momentos que são marcantes, como por exemplo quando se faz a primeira vindima. A minha primeira vindima foi em 1994 e é um momento que ainda hoje me recordo, das dificuldades, das alegrias, da forma como olhei para o curso de enologia e disse: bem se calhar há coisas que aprendi que afinal não são bem assim, ou então, achar que mais vale repetir aqui algumas operações que são feitas na adega e tentar perceber depois. Essas memórias são memórias que marcam. Como marca por exemplo, mais recentemente a criação de um vinho sem adição de sulfitos, pela sua dificuldade de evolução em garrafa. Ou por exemplo criar um espumante de Alvarinho. Do ponto de vista histórico, a criação do primeiro espumante de Alvarinho em 1995 é algo que vai marcar o Soalheiro, porque hoje em dia já se faz espumante Alvarinho. Até costumo brincar com este tema na Galiza quando antigamente só se fazia espumante Alvarinho em Portugal e nós fomos realmente os pioneiros. Todos estes momentos resultam de um processo contínuo.
Sendo filhos dos fundadores, com forte ligação desde criança à viticultura, foi essa a motivação para realizar o curso de enologia na UTAD e terminar o estágio na Borgonha?
ALC – Sem dúvida. Quando entrei para enologia na UTAD (eu fui da segunda leva, fui do segundo ano em que o curso funcionou), ninguém sabia muito bem o que era enologia. Comentava com os meus amigos e eles não sabiam o que era. O Portugal do vinho evoluiu muito. Sinto que hoje em dia um enólogo é olhado com alguma admiração. Quando saí de enologia era olhado com um certo desconhecimento. A enologia foi claramente uma opção. Sempre fui um bom aluno, com boas classificações. Era um aluno aplicado. Quando coloquei enologia como primeira opção tinha a certeza que ia entrar. A média de acesso era próxima dos 11 valores e a minha média do secundário era de 18 valores. Portanto, foi mesmo por gosto que ingressei nesta área.
Se pudesse escolher um dos seus vinhos para definir a sua personalidade, qual seria a sua escolha?
ALC – Soalheiro Primeiras Vinhas. Sem dúvida. É um vinho que tem um bocadinho de todos os mundos do Soalheiro. Consegue ter a frescura, aromática, a fruta, mas também consegue ser complexo e mineral como o Soalheiro Granit. O Soalheiro Primeiras Vinhas tem um pouco disso, que são as vinhas velhas juntas com um pouco de intervenção de adega, de enologia, onde 15% do vinho é fermentando em barricas usadas. É na verdade, um vinho que não parece muito persistente. É um vinho elegante. Considero-o um pouco como a minha personalidade, não gosta muito de estar na ribalta, mas que faz o seu trabalho bem feito. Sou um enólogo que assina os vinhos, mas não gosto de realçar essa parte. Prefiro perceber o prazer das pessoas ao sentir os vinhos.
O Soalheiro apresenta um portefólio de espumante de Alvarinho com perfil muito próprio. Porquê a aposta na elaboração de um espumante a partir da casta Alvarinho?
ALC – Quando começamos em 1995, tentamos fazer um espumante de Alvarinho que fosse um pouco mais champanhe em termos de estilo. Na realidade, verificamos que a casta Alvarinho tem características muito boas para fazer espumante. Tem acidez, tem a capacidade do espumante de ter bolha fina, que está muito ligada à concentração e proteínas das variedades ou composição dessas mesmas variedades. Há variedades em que o gás não fica tão bem dissolvido, em que a bolha não é tão fina. Reparamos que o espumante de Alvarinho revelava melhor aquilo que ele poderia apresentar em termos de potencial, se tivesse a frescura da casta. Nesse momento, nós percebemos que o Alvarinho tem um grande potencial para espumantes jovens, frescos e que têm uma boca persistente. Porquê? Porque por um lado consegue fazer bolha fina, ou seja, tem uma boa capacidade de espumatização e por outro lado tem um aroma que é diferente. Então, tivemos que procurar também um bocadinho a identidade do estilo de espumante que ele pode fazer, porque não é a imitar, ou a tentar fazer o que os outros fazem, que nós conseguimos encontrar essa identidade. Daí, hoje em dia, nós termos o nosso espumante de Alvarinho, diria, “clássico”, que é muito apetecível pelo seu aroma característico e não queremos fazer por exemplo um estágio muito longo com as leveduras, porque desvirtuaria esse aroma. No espumante de Alvarinho damos muito valor a esse aspeto, quer no Soalheiro Espumante Bruto Alvarinho, quer no Soalheiro Espumante Bruto Rosé, já no Soalheiro Espumante Bruto Barrica ou no Soalheiro Espumante Bruto Nature procuramos naturalmente outra essência. O Alvarinho é uma casta que permite fazer espumantes de muito boa qualidade pela característica inata de poder ter bolha fina e por ter acidez.
A Quinta de Soalheiro continua a ver o seu trabalho reconhecido. São vários os prémios nacionais e internacionais. O vinho Soalheiro Primeiras Vinhas 2018 conquista 93 Pontos Parker atribuídos por Mark Squires – The Wine Advocate (EUA). Qual o significado deste reconhecimento para si?
ALC – Para nós os vinhos também têm um simbolismo diferente de acordo com os momentos. É sempre um bocadinho ingrato escolher um vinho. Eu não vejo o vinho adaptado à pessoa. Vejo o vinho adaptado à gastronomia e ao momento. Por exemplo, hoje fim de tarde, depois de um dia cansativo do ponto de vista intelectual eu gostaria de ter um vinho que não puxasse muito por mim. Um vinho que está ali no copo e que vai parecer quase despercebido. Talvez escolhesse o Soalheiro ALLO, um vinho muito simples. É um Alvarinho & Loureiro 11,5% de álcool. Se me imaginasse num almoço de amigos, com um peixe gordo assado, talvez a minha escolha recaísse sobre um Alvarinho Soalheiro Reserva. Creio que é um bocadinho essa vivência dos vinhos que gosto de transmitir. Com um simples camarão grelhado seria um “clássico” e não imagino um “reserva” com esse prato. Não teria prazer na degustação e, no entanto, é um vinho muito mais caro. Este é o conceito como vejo os vinhos, como momentos.
Cada vez mais o enoturismo é um segmento da atividade turística que se baseia numa viagem motivada pela apreciação do sabor e aroma dos vinhos, das tradições e da cultura das diferentes localidades. Como é que vê a Quinta de Soalheiro neste segmento?
ALC – Nós temos enoturismo desde que o meu pai começou o projeto em 1982. Os primeiros enoturistas foram os amigos. O que é o enoturismo? É explicar a história do vinho quando se visita uma adega. Nós sempre tivemos a adega aberta para fazer este tipo de visitas. Hoje em dia, temos essa organização um pouco mais estruturada. Temos quatro pessoas na área de enoturismo e temos duas grandes valências: uma delas está relacionada com o alojamento local e uma outra relacionada com a parte das provas e dos momentos que podem ser passados na nossa adega com prova de vinho e gastronomia. Exemplo disso é prova de vinho e fumeiro, vinho e queijos, que tem hoje em dia uma grande procura. Entenda-se hoje em dia, antes do aparecimento do COVID 19. Criamos uma inovação no enoturismo com aquilo a que chamamos as provas digitais, “Os Digital Tastings”. Estas provas digitais não passam pela simples compra de garrafa. Temos um vídeo agregado que serve para explicar o vinho, o momento. Permite que no fundo não se compre um produto, mas sim uma experiência de turismo, uma vivência de uma prova. Devo dizer que tem resultado muito bem. O que queremos é ter uma porta aberta para transmitir emoções para quem nos quer visitar.
Recentemente traz para Portugal a produção de uma garrafa sustentável? Como surgiu essa aposta?
ALC – Temos certificação ambiental, talvez há mais de três anos. Isto fez-nos refletir sobre aquilo a que chamamos melhoria contínua. Isto significa que nos tornamos cada vez mais agonistas dos princípios que achamos que devemos defender para o futuro. E quais são esses princípios? Essencialmente ter preocupações ambientais, sociais, económicas e culturais. Sendo estes os quatro grandes valores que nós queremos manter na empresa, faz todo sentido que toda a nossa fileira desde a caixa, desde a garrafa, até aos simples resíduos, sejam tratados da mesma forma, ou seja, com uma preocupação ambiental. A ideia era trazer essa garrafa para Portugal e conseguir produzir uma garrafa que é personalizada, que é do Soalheiro. É bonita, é elegante, mas também tem uma redução de peso, o que faz com que ao nível do impacto ambiental, tendo em conta que hoje em dia a produção de vidro requer uma quantidade de energia significativa, conseguimos reduzir em cerca de 20% a quantidade de vidro. Desta forma, conseguimos ter menos impacto em termos de emissões para o ambiente. No entanto, já estamos a pensar noutras ações, ou seja, é um caminho contínuo. Trazer para Portugal esta produção foi importante por dois fatores: primeiro valorizar a economia local e o segundo fator tem a ver com o desperdício energético, dos custos o que está associado ao desperdício, em vez de trazer as garrafas do centro da Europa para Portugal. Em termos de transporte reduzimos cerca de 8 vezes esse custo, o que é significativo. Vemos o lado do benefício.
Se estivesse a começar hoje a sua atividade como enólogo, tendo em conta a sua atual experiência, o que faria de diferente?
ALC – Na verdade, o conhecimento é o ponto central da valorização da nossa equipa. Permite-nos fazer as coisas de forma diferente, portanto eu faria muita coisa diferente. O que somos hoje, não somos amanhã. A procura em criar uma camada de conhecimento à volta da empresa Soalheiro faz com que a nossa visão do futuro, e até do passado, seja diferente. Dou-lhe um exemplo: o conhecimento que nós temos hoje com a equipa em todas as faixas, desde a produção à logística, faria com que se calhar começássemos de imediato com alguns vinhos que só surgiram passados vinte anos. Para surgir o Soalheiro Nature ou o Soalheiro Terramatter, admito que possamos ter estragado algum vinho. Hoje tal não acontecia, o que em termos de investimento seria muito bom.
Com um percurso reconhecido nacional e internacionalmente, quais são os novos projetos ou apostas que podemos esperar da Quinta de Soalheiro?
ALC – Em termos de diversificação, até porque é algo que também é importante para o território e para esta sustentabilidade global, começamos há cerca de 2 anos a produzir infusões de chá. Infusões essas que são do nosso território, são adaptadas ao Minho e nesse sentido vamos evitar que haja uma massificação só pela viticultura, porque queremos realmente diversificar. Queremos que o turismo seja um ponto de divulgação do território, do Soalheiro e do Alvarinho, algo que considero ser inovação. É estranho não falar de vinhos? Neste aspeto nós temos uma estratégia que considero até engraçada. Criamos uma incubadora que abre as portas do Soalheiro a jovens. Neste momento temos três projetos, um deles com 35 anos e outro com 24 anos. A nossa ideia é com isto também rejuvenescer as nossas ideias e criar conceitos que para nós seriam muito difíceis de criar. Isto é, vamos ter sempre a nossa inovação “clássica”, onde coloco aqui um novo vinho que surgirá de Pé Franco Alvarinho. Mas também coloco a nossa inovação na incubadora de ideias, como por exemplo, fazer um vinho ao qual chamamos Alvorone, porque é parecido com um vinho de Itália, o princípio de produção é o mesmo. Portanto, tudo isto é algo que é feito para não ficarmos confortáveis sentados na nossa cadeirinha clássica e termos sempre gente nova à nossa volta para nos dar ideias inovadoras, ideias diferentes. Considero que tem resultado.