Licenciada em Sociologia trabalhou no setor da saúde até 1997. Agora dirige a casa Ermelinda Freitas e faz o melhor vinho tinto do mundo. Ganhou o prémio de melhor tinto do mundo num prestigiado concurso internacional. Um estímulo, mas também uma responsabilidade acrescida à Casa Ermelinda Freitas, uma marca que Leonor Freitas dirige com empenho, alma e dedicação. Até agora, o seu vinho já recebeu 70 medalhas de ouro e 63 de prata a nível nacional e internacional, e muitas mais se seguirão dado o entusiasmo que a filha de Ermelinda Freitas deposita no vinho dos seus antepassados. O seu maior sonho é ser capaz de transmitir aos filhos, a quinta geração, aquilo que os pais lhe transmitiram: o amor à terra, o respeito pelo próximo e o trabalho em prol do nosso crescimento e da sociedade.
Texto: Pedro Silva
Fotografias: Fotos D.R.
Em que idade despertou em si a curiosidade e o interesse pela atividade vitivinícola?
LF – Eu nasci em Fernando Pó, lugarejo rural vitivinícola. A minha infância foi vivida no meio das vinhas, toda a minha família trabalhava e vivia economicamente da produção de uvas e mais tarde do vinho. Eu sempre gostei muito de tudo o que estava ligado à agricultura, mas o trabalho e a incerteza económica levaram a que a minha família me motivasse para estudar e poder ter uma vida com menos preocupações do que a deles e um trabalho mais de “escritório”, pois para eles a vida da cidade e a vida administrativa era a grande ambição para um filho. Mas, tenho a dizer que quando fiz o 5.º ano e secundário, tentei ir para o curso que havia na altura de Regente Agrícola, escolha esta à qual o meu pai se opôs, dizendo que não era curso para uma menina. Assim continuei a estudar, licenciei-me em serviço social e trabalhei mais de 28 anos no Ministério da Saúde. Após todo este percurso, é aos 40 anos que me dedico à vitivinicultura, sendo algo que me era negado, mas que no fundo estava adormecido, contudo interiorizado e, que nesta idade por força maior, acabou por se revelar.
O que a levou a ingressar por esta via? Como foi isso sentido pela família?
LF – Não estava no meu projeto de vida vir para a vitivinicultura, nem ser empresária agrícola, pois tinha a minha vida muito organizada em Setúbal, a trabalhar na minha profissão da qual também gostava. Com a morte prematura do meu pai e, não estando a minha mãe que ficou sozinha (pois eu sou filha única), com força para dar continuidade à casa agrícola que era na altura, pois tínhamos 60 hectares de vinha e uma adega tradicional que transformava a uva em vinho e vendíamos a granel sem marca própria. Refletindo o que me levou a deixar tudo e a dar continuidade é uma palavra que eu chamo amor, amor este que a família me passou à terra e ao exemplo que eu assisti do trabalho e dedicação da minha família. Foi esta base que me deu coragem para enfrentar a mudança, pois em caso contrário teríamos vendido as vinhas e a adega. Nesta reflexão, sinto que a minha família não acreditava que eu tomasse esta opção, mas foi bem aceite pela minha mãe, que manifestou grande alegria, mas também grande insegurança acerca daquilo que eu sabia sobre a vitivinicultura e o mundo rural.
Quais as pessoas que mais a ajudaram a detetar e a desenvolver esse interesse? Alguma forma ou situação concreta de ajuda que obteve deseja mencionar?
LF – O facto de eu ter saído do mundo rural, ter tido uma formação, embora diferente, quando regressei, toda esta aprendizagem fez a diferença. Quando voltei, eu sabia que não sabia e é assim que procuro as pessoas para me ajudar. Tenho a realçar a importância do enólogo Jaime Quendera, que perdura até aos dias de hoje, assim como não poderei deixar de agradecer a todas as pessoas que já trabalhavam com a família e que me apoiaram e continuam a trabalhar na empresa. Posso adiantar que tenho netos de pessoas que trabalharam com os meus pais. Também não me posso esquecer de referir a minha família atual e em especial o meu marido, que embora continuasse a trabalhar na sua profissão, apoiou-me incondicionalmente e quando eu referia que possivelmente tinha já feito algo errado, ele retorquia: “…não te preocupes que eu não seria capaz de fazer melhor.”
Na sua longa experiência nesta atividade secular, qual o episódio ou situação que mais a marcou e porquê?
LF – Claro que sendo eu uma das primeiras mulheres da região, a assumir uma casa agrícola, com entusiasmo e com mudança, tenho vários episódios que revelam o que era a sociedade e o mundo rural da altura. Lembro-me hoje com algum sorriso, mas que na altura não posso deixar de dizer que me deixava perplexa, ir a uma reunião de viticultores e o presidente da assembleia que geria a reunião dizer, “…minha senhora e meus senhores.”, claro que essa senhora era eu pois era a única. Também tenho um episódio que acho e acharemos todos que de futuro terá mais impacto, um senhor que me queria vender uvas, mas dizia que só fazia negócio com homens, não negociava com mulheres. Claro que eu tive de ter a compreensão do que se passava e fazer que não percebia e como não teve outra hipótese, teve de fazer negócio comigo sempre a olhar para o lado. Ele próprio tinha que ignorar que eu era mulher. Enfim, somos nós que temos que compreender e ajudar nesta evolução.
De olhos postos nos traços da sua personalidade, que atributos subjetivos a impeliram para se entregar à vitivinicultura e aí ter conseguido atingir o êxito e reconhecimento a nível nacional e internacional?
LF – É sempre tão difícil falar de nós, mas eu vou ser clara naquilo que sinto! Foi o meu amor ao que fazia, a minha grande persistência, a grande motivação que me levou a trabalhar muito, ser muito lutadora (ainda hoje mesmo com a minha idade, é um fator que persiste), mas também sou muito humilde para ouvir o outro e aprender com ele.
Identifique os principais obstáculos que surgiram no seu caminho e como os ultrapassou?
LF – Não ter formação na área. Procurei quem a tivesse. O facto de ser mulher e não ser reconhecida como conhecedora da área vitivinícola, levou-me a um esforço para não falhar em nada que fazia. A principal dificuldade foi aprender a viver com a instabilidade económica do setor e com as condições climatéricas que o afetam. Esta aprendizagem teve de ser comigo própria, pois se assim não fosse não conseguiria sobreviver.
As oportunidades foram decisivas para o seu sucesso? Quais as mais significativas e como as aproveitou?
LF – O sucesso só se consegue aproveitando as oportunidades e não sendo passivos, mas sim um elemento ativo desse próprio sucesso. Não desanimar em altura de crise, termos a preocupação de ter grande qualidade com a melhor relação preço. Foi importantíssimo deixar de vender vinho a granel criando assim marcas próprias que se encontram bem presentes no mercado e são reconhecidas. Não posso deixar de revelar que não nos podemos isolar no nosso mundo, foi importante a primeira visita que fiz a Bordéus, pois foi aí (ainda vendia vinho a granel), que tive a noção da dignificação do vinho e daquilo que eu não valorizava, mas podia vir a valorizar. Após as marcas criadas e concorrer aos concursos mais importantes a nível nacional e internacional, ainda hoje me lembro da primeira medalha de ouro ganha com o Terras do Pó em Bordéus, depois o grande prémio ganho na competição de vinhos Vinalies Internationales de 2008 em Paris, onde o Syrah 2005 foi considerado o melhor vinho tinto do mundo e a partir dai todas as distinções que tenho tido e que recebo com grande alegria orgulho e humildade, mas grande preocupação e responsabilidade, têm sido um incentivo de que temos estado no caminho certo.
Se recuasse no tempo, enveredaria novamente pelo empreendedorismo empresarial? Porquê?
LF – Não posso dizer que a minha vida tem sido só facilidades, mas não tenho qualquer dúvida em afirmar que faria o mesmo caminho! O prazer de criar postos de trabalho, numa atividade em que todos os anos são diferentes. É esta luta que me dá força para continuar e vencer as dificuldades. Sinto que todos os dias existe uma aprendizagem constante e que todos os dias tenho que arredondar os espinhos, sabendo que quando tudo está bem, nada é para toda a vida, o que me leva a lutar diariamente para melhorar e vencer.
Sendo uma mulher, de entre poucas, a atingir, na sociedade, um lugar de destaque, o que se lhe oferece proferir na específica questão da igualdade de género?
LF – Tenho muita pena de ainda hoje falarmos em igualdade de géneros. Infelizmente sinto que já evoluímos muito, mas muito ainda há para conquistar. Também refiro sempre que a mudança tem que estar em primeiro lugar dentro de cada um de nós. Muitas vezes falei comigo própria, “…não é por seres mulher que não vais dar continuidade ao trabalho da família!…”, isto é a tal afirmação e mudança pela qual temos de lutar embora eu perceba que nem todas a mulheres têm a sorte de ter na família (e aqui refiro o meu pai e o meu marido), pessoas com mentes abertas capazes de aceitar a igualdade de géneros. Agora eu posso confirmar com toda a minha experiência, que não existem trabalhos para mulheres nem para homens, existem as pessoas certas nos lugares certos.
Os 100 anos de legado histórico feminino da “Casa Ermelinda Freitas” trouxeram até aos dias de hoje a preocupação pela dimensão social? Como se concretizou essa experiência?
LF – Eu tive a sorte de nascer numa família rural, simples, mas com grandes valores de honestidade, trabalho e de ajuda ao próximo. Valores estes que me foram passados e que eu luto diariamente para conseguir transmitir aos meus sucessores (5ª Geração) e como a Casa Ermelinda Freitas tem tido sucesso e evolução, pois a sociedade tem ajudado adquirindo os nossos vinhos. Eu estou sempre agradecida aos meus consumidores e penso sempre como posso ser útil, devolvendo um pouco à sociedade daquilo que ela me tem ajudado. Assim cumpro o que eu acho que é a obrigação de todas as empresas em criar projetos de responsabilidade social. Eu sou uma pura rural, nasci no campo, toda a minha família é rural, e sinto-me muito na obrigação de dignificar o trabalho rural e ajudar as famílias e instituições que me estão próximas, pois na minha região sou a maior entidade empregadora.
Sendo filha de Ermelinda Freitas, herdou o empreendedorismo familiar por missão ou por vocação?
Não tenho qualquer dúvida em dizer que aquilo que tenho feito e que herdei, em primeiro lugar, tudo foi um empreendedorismo por amor! Pelos exemplos de trabalho da família, pela alegria que sinto em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, em criar postos de trabalho, sentindo que a casa ia tendo sucesso, ia-me incentivando para seguir este caminho, no qual me orgulho divulgar os vinhos de Portugal, da região da Península de Setúbal e dignificar um lugarejo rural onde nasci que se chama Fernando Pó.
Quais os fatores mais decisivos que influenciaram o seu percurso de gestora empresarial?
Os fatores foram amor à família e ao trabalho. Motivação para dinamizar e fazer crescer o setor. Procurar as pessoas certas para trabalharam comigo, valorizar essas pessoas como um dos meus patrimónios mais importantes, pois sozinha nada faria. A qualidade das uvas da região onde a Casa Ermelinda Freitas está inserida, a Península de Setúbal, ter a noção que os vinhos tinham que ir ao encontro do gosto do consumidor, pois é para eles que trabalhamos, saber receber bem quem nos visita, não me fechar no meu casulo de região e ter noção do que se passa no resto de Portugal e no mundo. Ser dinâmica e andar de mala feita divulgando os produtos da Casa Ermelinda Freitas, divulgando assim também Portugal. Tentar antecipar as necessidades do mercado indo ao encontro do consumidor. Lutar sempre nos momentos negativos, para que eles se tornem positivos.
Nos dias de hoje, quais as variáveis necessárias para se ser uma empresária de sucesso em Portugal?
Antecipação, participação, ter noção da globalização, lutar todos os dias tendo a consciência que nada está ganho e que tudo tem de ser adquirido diariamente.
De que forma está vertida a ética em toda a sua atuação?
Em toda a minha atuação tenho de estar bem comigo própria, pois só assim consigo estar bem com os outros. Respeito muito o trabalho de todos. Cada novo dia é uma nova aprendizagem. Também o grande respeito para quem trabalho todos os dias que são os meus consumidores.
Dado o seu relevante percurso, já calcorreado, o que ainda a move na edificação da excelência?
Falar em excelência é dizer que nunca estamos realizados com o que fazemos. Portanto, é uma procura constante de melhoria de respeito, de autoanálise connosco próprios, de modo a melhorarmos e, nesta insatisfação, procurarmos ser cada vez melhores, mais responsáveis e respeitarmos a sociedade sendo assim elementos ativos na mudança da mesma. No meu caso, melhorar a minha relação com a família, funcionários, o meu produto (os vinhos) e claro melhorar a minha relação e a minha responsabilidade com os consumidores, que são a minha razão de existência. Sem eles eu não poderia falar nem em sucesso nem em excelência de trabalho.